segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Amor, ato e entorpecente

(((palavras sobre o filme Shortbus, de John Cameron Mitchell, que está em cartaz nos cinemas de SP)))

Shortbus é um manifesto o qual apenas o cinema poderia garantir com tamanha clareza nos prós e contras de sua ideologia: a busca por uma nova relação de afeto na humanidade. O diretor e roteirista John Cameron Mitchell produziu com astúcia uma obra aberta a diversos entendimentos, da fantasia às confusões psicológicas, sobre a opção por responder a um questionamento paralisante: o que há comigo?

Jovens se reúnem num pequeno clube underground para enfim promoverem o sexo livre, com espaço para todas as práticas bizarras que podemos encontrar na prateleira concorrida, porém, não menos solitária, de filmes pornôs, de um site ou locadora. Todos, sob influência do universo contemporâneo individualista, sob sedução da tecnologia e do acesso fácil aos espaços mais remotos.

Sem fugir da ironia e graça dos deliciosos banquetes do Satyricon, de Petrônio, ou excluir a intensidade macabra dos personagens do Marquês de Sade, as cenas de nudez e sexo explícito, muito criticadas pela imprensa americana, expõem alegorias não gratuitas neste filme.

Em se tratando de um público espectador de cinema adulto oriundo de uma sociedade voyer que se relaciona diariamente através de imagens, fragmentos da realidade, de todos os tipos – de mortes no trânsito até a pedofilia. Tema este que o roteiro de Mitchell, mesmo reiterando a diversidade sexual contemporânea, preserva como tabu, reconhecendo a essência da discussão na sociedade: a violência infantil.

Assim, a odisséia de experiências sexuais e os dilemas do seleto grupo de freqüentadores do pequeno clube de Nova York, deixam no espectador o impacto de uma estúpida busca para se adequar a algo inconveniente: a civilização; e retirar prazer de sua promessa salvadora, seja à força no caso de Sade, ou através da sedução, como no livro do autor romano.

Por isso, o prosélito aqui é o amor, como ato e entorpecente, capaz de amenizar a dor de viver a desintegração, e ainda tirar humanos de cena, com dignidade, para a paz eterna. Na obra, esse amor, que todos buscam no olhar, no tato, na ejaculação e nos objetos, -no orgasmo-, acaba por contaminar as ações cotidianas das personagens, que aos poucos percebem imersos em sua lógica viciante e irreal - uma ambígüa sanidade.

Em Shortbus, o diretor adiciona nesses jovens os temperamentos lascivo, decadente e sem esperança (no future), da Blank Generation, de Nova York, do final dos anos 1970, mote da obra Mate-me, Por Favor, de Legs McNeil e Gilliam McCain, ao coquetel psicodélico e infantil do romancista Ken Kesey e seus Merry Pranksters – turma do flower Power de São Francisco, que viajou o país dentro de um ônibus escolar e foram imprescindíveis na difusão do LSD nos EUA, no início dos anos 60.

Personas que contrastam com a protagonista da trama, uma terapeuta de casais (Sook-Yin Lee), que nunca teve um orgasmo, e traz a burguesia e sua fixação em manter a aparência para dentro do ônibus colorido novaiorquino.

Experimentos como o de Cameron Mitchell são alcançados somente à pressões sufocantes: seja sob a fissão nuclear que tanto o país teme em seu território, desde Hiroshima, e que nunca ocorreu, ou o choque real de dois aviões, no conjunto de arranha-céus mais imponentes da cidade, e seus desdobramentos beligerantes.

Neste ponto, através das palavras de um político arrependido, Cameron Mitchell nos responde o que investiga naquele divertido e decadente clube. E naquela cidade aberta a todas as cores. Percebemos que desde o 11 de setembro, Nova York não dorme legal. Algo emperra, não encaixa, mesmo nos sensíveis habitués do Shortbus.

NY quer encontrar a sua culpa neste jogo entre mundos diferentes, sendo seus habitantes de caráter tão tolerante. NY quer encontrar a sua penitência, o seu castigo, por viver a vida tão intensamente e o próprio corpo não bastar para sentir sensações, sendo preciso que o outro ative mecanismos ancestrais, utilize parafernálias eletrônicas, apele para a violência.

NY não entende, como também não entendem seus filhos de Wall Street, o monstro vingativo o qual alimentaram com a imposição inescapável do seu universo. Neuroses de uma sociedade atônita, que ainda não acordou de um grande choque e vive sob a farsa das promessas do contemporâneo.



"Antes, se me lembro bem minha vida era um festim
em que se abriam todos os corações,
todos os vinhos corriam"

(Uma temporada no Inferno, Arthur Rimbaud)

"Engoli um senhor gole de veneno –
Três vezes abençoado seja o conselho que me deram!
As entranhas me ardem!"
(idem)

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