segunda-feira, 29 de setembro de 2008

APOCALIPSE NÔ - II

"Do cadafalso do mundo, observou birutas nos arranha-céus"


Texto 2.

Fannie e Lisa bocejavam em frente aos computadores - era mais um dia tedioso de oscilações imprevisíveis nos mercados. Tardava a injeção de grana por parte do governo na economia. O que suscitava confusões em seus sentimentos frágeis que adoeciam à percepção de obstáculos cada vez mais intransponíveis.

Naquele momento, não ligavam caso fossem as próximas a receber a intimação demissional. Estavam entediadas. E nada no mundo as excitaria. Nada.

Suas mentes mal praguejavam vinganças ao sistema financeiro. Os números, aqueles covardes, eram pura ilusão, haviam enganado até as mais precisas calculadoras. Apenas uma certeza: era um sistema sólido, sua força de regeneração irremediável; todos os juros seriam quitados até a destruição e remanejamento das casas. Os homens cuidariam de tudo, bastava esperar pela ajuda salvadora.

O mundo estava parado e nada havia o que fazer. Restava admirar o cata-vento esquecido pelo filho da Maggie no parapeito da janela; brinquedo dócil aos ventos sufocantes de setembro ventilava alívio ao colapso com sua brisa de imensas cores; cata-vento que ambas pensaram juntas só haver no passado imemorial que lhes retornava para distrair a cabeça.

Fannie e Lisa bocejaram em simultâneo por três vezes seguidas. O ar inflou os pulmões de uma até travar-lhe as costelas; como doía o tédio abdominal - falta de estímulos na carne desde a semana passada; com os contracheques suspensos, à espera de um milagre, para voltar aos papos com os bons tipos da academia; a qual deixou esta semana por falta de pagamento.

Melinda, a mandona que todo patrão sonha, vigiava os números atrás de uma trincheira de papeis; eram os contratos emitidos nos últimos dois anos. Uma impossível contagem de agora imprescindíveis pagamentos futuros não relacionados no balanço do escritório.

Melinda era do tipo que trabalhava horas seguidas; sempre fiel aos compromissos. Naquela semana tensa, parecia ter envelhecido dez anos. Rugas, queda de cabelos, olhos contornados por imensos anéis negros. Estava exausta. A sua frente papéis de diversas cores, documentos vindos de todo o canto do mundo. Seu corpo queria se jogar sobre tudo aquilo antes de adoecer por completo. Antes da grande convulsão.

Mas uma voz distante disparava berros desesperados a cada cochilo seu. Acorde, acorde, que virá a qualquer momento, que virá a qualquer momento. Você! Era um tumulto de vozes ensurdecedor.

Sua mente fraquejava, queria esquecer toda aquela responsabilidade; não tinha menor culpa. Mas aquele trovão estalando raios seus dentes batiam, seu corpo frigia a cada nervo do corpo que aceitava a derrota do cansaço. Ela não desistiria de remediar aquele caos.

Num desses devaneios repentinos, Melinda abriu os olhos assustados. Imaginava ter ouvido o urro da besta feroz, como noutros pesadelos que lhe acometeram os sonhos naquela semana; algo gigante que ela não conseguia distinguir nas sombras, mas que pressentia o respiro devastador.

Vagarosamente ergueu a cabeça sobre a pilha de papéis. Viu o escritório. Deserto. As luzes apagadas, pastas, papéis, pelo chão. Parecia a sala do 4° após o pregão. Devastada.

Resolveu levantar-se, e ir até a janela observar os carros por um momento. Era madrugada já. Dormira quantas horas? Ainda havia muito trabalho e não poderia pregar os olhos assim tão facilmente.

A verve alemã que corria em suas veias não lhe permitia fugir ao compromisso. Mas era alucinante aquela voz, que lhe pedia mais e mais. Ela já queria mais estar dentro de si. Com aquele sino badalando a cada fraquejo.

Começou a andar em círculos. Pressentiu que algo de proporções gigantescas se aproximava; podia ouvir seus passos demolindo prédios e casas a quilômetros dali.

Foi até as portas, elas estavam trancadas. O faxineiro, novamente, pensou. Por vezes o rapaz da limpeza, o qual não se certificava se haviam pessoas trabalhando no escritório, a trancara pra dentro. A mesa de Melinda ficava ao fundo, perto de Fannie e Lisa, com rápido acesso às escadas de incêndio. Possuía pavor por prédios altos. A vida toda temeu algo ruim.

Os passos destruidores pareciam mais próximos. Queria abrir as janelas, mas estavam invioláveis. Há alguns dias, por medida de segurança, a empresa pregou todas as janelas; eram tempos difíceis, temiam-se "suicídios gratuitos", comunicou num memorando o supervisor K. Street.

Contudo, nenhum suicídio, ataque cardíaco, ou coma alcoólico foi registrado nos anais de Nova York. Ao longo da semana, os jornais registravam em sua longa cobertura, fotos dos demitidos e suas caixas contendo pertences; saindo apressados dos imensos totens de mármore que adornam a boca faminta de Wall Street, mas tranqüilos, sem revolta, aparentemente conscientes da regra do jogo.

Seria Melinda a primeira a quebrar o silêncio daquela tensão horrível com um grito agudo desesperado? Alguém saberia o que fazer. A ajuda estava caminho.

Escondeu-se com pavor debaixo de uma das mesas. Abraçou aos joelhos. A mente queria fugir nas idéias. O que era aquilo que aproximava com passos pesados, criando fissões em nosso solo? Seria o fruto da dinâmica de nossa fé? A entidade a qual devotou todos os dias de trabalho?

Melinda estava certa, havia se materializado a profecia das cartas econômicas: atrás das oferendas, o grande dragão trazia terremotos ao pretender subir à terra.

Aquele, de fato, era motivo para todos ficarem apavorados, pensava. Aquele monstro que por vezes ouvira nos rumores entre os corretores. Eles sabiam, viam nos seus imensos cismógrafos - o respiro da besta rondava a cidade. A destruição era eminente.

Nos últimos dias, dedicada exclusivamente a socorrer seus patrões da dêbaclè, desdenhou daqueles que juravam pânico aos repórteres. As finanças estavam um caos, mas nada concreto acontecera.

Os rapazes do 4° apareciam nas TVs angustiados, temendo o pior; mas não subiram à cobertura do prédio para clamar ajuda, não havia incêndio; ela, mesma, ao descer para um rápido recreio não esbarrou em imensas filas de esfomeados nas cercanias de Wall Street, a fome estava longe dali.

Onde, por Deus, se escondia esse terror que escorria frio em suas testas. Onde arrebentou a fissão que trouxe aquele monstro a Terra?

Ergueu-se de sob a mesa. Tomou impulso. Saiu em disparada contra uma das janelas. Pensara rapidamente a respeito e a única certeza de Melinda era o fim.

Foi uma angustiante espera até agora, que aos seus olhos escaparia fechados em sono profundo. Estava definido.

Lançou-se em seus pesadelos, não havendo surdez existente para alarmes tão estridentes. Como, também, não havia forças suficientes para conter o vício humano de criar monstros.

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